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Sushi
por Liliane Reis
A porta de madeira gasta sob as bandeirolas estampadas com ideogramas incompreensíveis (ainda que familiares) pareceu-lhe estranhamente confortável. Era como se, de alguma forma, reduzir a recém descoberta sociedade nipônica a uma primitiva aldeia pesqueira fosse capaz de espantar todo o caos de algumas tantas quadras atrás. Ali, naquele espaço impregnado com o cheiro de maresia, dissipavam-se os templos de letreiros luminosos, com seus jovens monges de olhos de néon e cabelos desafiando a gravidade; a divindade high-tech local parecia incapaz de alcançar aquele porto. Bem, ele mesmo mal sabia como voltar dali para o hotel, mas isso não importava no momento. O que mais valia era a sensação de que aquela Nova Iorque do mundo bizarro pós-apocalíptico ficara para trás, perdida em um episódio aleatório de uma animação japonesa, ou mesmo nos confins dos storyboards de Blade Runner. Para quem gastara tantas milhas em busca da proverbial filosofia zen, o mundo fluorescente que gritava às suas costas era assustador.
Voltou à porta, quando dela irrompeu um pequeno grupo de pescadores não-tão-sóbrios-assim, rindo e gesticulando mais do que ele esperava de japoneses – ainda que bêbados sejam bêbados, em qualquer cultura. Aproveitou, então, para espiar o interior, e concluiu que os gatos pingados que ocupavam aquele lugar pareciam muito pouco interessados em molestar um gaijin, enquanto conversavam em tom expansivo. Calou o iPod, tirou os fones dos ouvidos e entrou, esforçando-se para parecer discreto apesar da obviedade germânica de seus traços. Resignado – e até mesmo satisfeito – averiguou as poucas mesas distribuídas no espaço reduzido, os clientes, a senhora e o moleque de cabelos ensopados que pareciam responsáveis pelo atendimento.
Notou, então, que havia um segundo espaço, a apenas uma porta de distância – a bem da verdade, mais um daqueles portais adornados por bandeirolas. Esticando o pescoço para averiguar, captava somente a iluminação com algo de cor e um som agonizante que, com alguma sorte, poderia ser apenas o resultado daquilo que japoneses conheciam como karaokê. (Àquela altura, ele já perdera as esperanças de compreender o povo que o recebia em sua terra.) Quando uma mocinha pouco mais nova que ele deixou a suposta cozinha e lançou-se na luz furta-cor, bandeja nas mãos, decidiu segui-la. Os kappamaki pareciam bons.
Descobriu-se em uma espécie de salão principal, provavelmente destinado a quem estivesse disposto a gastar um pouco mais que os bêbados do porto. Globos de luz giravam, fazendo com que pontos alaranjados desfilassem lentamente, até se tornarem azuis e voltarem à cor original. Um pequeno grupo se acomodava ao redor de uma mesa mais ampla que as da sala anterior, aplaudindo e balançando os corpos no que deveria ser o ritmo original da música que um deles entoava. Do outro lado do espaço, um grande aquário fazia um sombreado ondular pelas paredes, dando uma estranha fluidez ao ambiente. De uma forma estranha (e o que ali não era estranho?), mais parecia que o aquário era, na verdade, toda a sala.
Aproximou-se, deixando de lado a euforia que chegava aos seus ouvidos. Estreitando os já miúdos olhos azuis, inspecionou primeiro as duas carpas que dançavam pelas águas. Só depois, como se um protocolo de etiqueta precisasse ser seguido, é que se permitiu encarar a maior das ocupantes do aquário. Num cálculo rápido, deduziu que ela teria pouco mais de um metro e vinte de altura – ou comprimento, como lhe pareceu mais apropriado depois. As escamas da cauda, de um laranja intenso, ganhavam uma coloração próxima de creme ao alcançar o que ele arriscava a chamar de cintura, enquanto a cara oval fazia lembrar porcelana lustrosa. Não fosse o reflexo intenso que corria o corpo a cada encontro com a luz, e ele poderia jurar que era pele.
Foi um breve susto quando olhos muito negros e vivos estabeleceram contato com os seus; o estranho conforto, porém, não tardou a voltar – um torpor que acompanhava o movimento das barbatanas alaranjadas que lhe faziam vezes de cabelos, ou mesmo o pender dos braços magros, quase atrofiados, ao longo do corpo. Mas, ainda que tivesse esquecido a respeitosa distância e já quase colasse o nariz ao vidro, ela ignorava sua presença.
Quando veio o novo cantor, passou os olhos pelas paredes, acompanhando as sombras da água moldando as luzes multicoloridas, carpas bidimensionais nadando junto aos sujeitos que, a essa altura, entoavam juntos uma canção que parecia ser a versão japonesa para um hit internacional perdido no tempo. E olhou para ela – aquela que não cantava e parecia absolutamente alheia à situação, possivelmente com uma memória que não durava mais que cinco minutos. Não que precisasse de mais do que isso. O oscilar de barbatanas e guelras bastava.
A música parou, então, e o grupo parecia prestes a sair. Depois que partiram, voltou até a sala anterior onde, sem cerimônias (ou mesmo sem dar atenção aos chamados da mulher e seus filhos), pegou uma cadeira e a carregou consigo de volta. Ainda esperou alguns instantes, como se para ter certeza de que ela não estava escondendo qualquer tipo de truque para quando estivessem apenas os dois – talvez fosse tímida. Mas não: tudo que se ouvia era o barulho da bomba do aquário. Seu adorável elo perdido e suas primas continuavam como sempre estiveram. E ali, sentado, concluiu satisfeito que elas – e em especial ela, a que quase parecia humana, mas fazia o favor de manter-se peixe – eram as coisas mais simpáticas que jamais conhecera.
– Anata wa kappa wo shiriau you ni machimasu no deshou...
Era a menina da bandeja, parada ao seu lado desde sabe-se lá quando. Como obviamente não entendeu nada do que ela dissera, contentou-se em responder com um erguer de sobrancelhas e um menear de cabeça que não dizia nem sim, nem não. Ela esboçou um riso breve, por sua vez.
– This… It is nothing, sir. The kappa. You wait to see it.
Um breve “ah” lhe escapou por entre os lábios – mesmo que não tivesse idéia do que fosse “kappa”, a sugestão bastava. Declinou, um aceno educado e um “latter”, enquanto voltava sua atenção aos peixes. Ele veria o kappa, sim, e mais o que fosse, de preferência acompanhado por um bom yakisoba, mas depois. No templo (quase um refúgio) que encontrara, ainda existia a maior mágica de todas: o tempo. E, por ora, preferia tê-lo ali, nas ondas que o envolviam em silêncio.
© 2009 Liliane Reis