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O Rolê
por André Catuaba
“Que coisa estúpida é a vida” ele dizia enquanto atravessávamos os grandes descampados do Planalto Central, “a gente enche o pulmão de ar e solta, enche o pulmão de ar e solta, enche de novo e solta de novo, de vez em quando a gente dá uma cagada, uma dormida, uma trepada, vê um filme. A gente é um balão de ar e um tubo processador de merda. Sabe quantas toneladas de merda fabricamos durante a vida? Tem idéia? Há algum tempo venho tendo idéias niilistas. Somos piores que os cães. Tão incomensuravelmente selvagens, insidiosos, covardes! Abutres! Piores que os abutres e os porcos. Tudo é por acaso e vale a lei do mais forte, sempre foi assim. Animais procriando, roubando e passando frio. Você está nesse mundo e é impelido a sofrer e a sobreviver. No fim só lhe resta a velhice e a decrepitude. Seremos igualmente engolidos pelos vermes e pela história e ao fim e ao cabo tudo terá sido em vão. Não é por nada. Não é que queira parecer fatalista ou que tenha descoberto algum segredo. No fundo todos se sabem sozinhos e condenados à dissolução. A gente enche o pulmão de ar e solta, enche de novo e solta de novo. Para que? Todo esse interlúdio terá sido apenas um mal-entendido.”
“Por favor, sente”, ele costumava dizer ao puxar para mim uma cadeira de ferro no Por do Sol, “olhe só, a civilização é um chiqueiro e a fauna humana definitivamente a mais nojenta que já passou por essa esfera minúscula que rodopia no espaço. Toda religião é uma alegoria grotesca da nossa perplexidade perante o incompreensível. Com a pouca ciência que temos, nos tornamos ainda mais perigosos. A filosofia não responde nada e não serve para absolutamente nada. É uma piada de salão para mamíferos na iminência do abate.”
“Mas eis que de repente eu penso”, e essa era geralmente a parte em que Fulana, a de cabelo laranja e camiseta dos Stones, antiga pseudo-paquera dos tempos do Leonerds, sorria de longe e lhe mandava um tchauzinho, “que deve haver, de alguma forma estranha e incompreensível, um princípio de pureza nisso tudo. É apenas uma intuição, um frio nas bolas, uma fome. Quando o seu pai comeu a sua mãe e encharcou-a de esperma, havia um impulso. Havia uma busca. Não é de outra forma que se fazem os bebês. É com pau lá dentro da boceta cuspindo espermatozóides cabeçudos e cheios de informação genética. Todos e cada um de nós nascemos de uma simples trepada. Geramos – quer dizer, elas geram – uma larvinha que vai crescendo e criando dedos e olhos. Chocamos lá dentro bebendo o líquido amniótico e de repente somos expelidos no mundo. Começa aí a nossa sina de encher e encher de novo o pulmão – nosso balão de vida. Mas pense: aqui, nesta esquina do universo, a essa distância do sol, há um balãozinho que precisa de oxigênio, o que por aqui há de sobra. Seria mesmo uma coincidência assombrosa, mas e se não fosse coincidência?, e se houvesse um....? eu apenas me rendo aos fatos: constato a complexidade, a sofisticação e a simetria da natureza. A estrela do mar. O diamante. Os corais multicoloridos e as araras. Não, não pense que me tornei sentimental, mas...”
“Ah, mas vamos embora dessa pocilga”, ele geralmente dizia depois da terceira ou quarta, quando começava a se sentir mais lírico e sugeria déssemos uma volta, “a vida é travessia. Tão frágil, um negociozinho complicado, múltiplos sistemas operando juntos, o sistema sanguíneo, o respiratório, o nervoso, o digestivo, pra não falar no sistema bancário, financeiro e na teoria de análise de sistemas. Pra que tudo flua, pra que você esteja aqui hoje, nessa esquina, enchendo o balão de ar, deve haver alguma espécie de concluio, de trama, não?, quer dizer, às vezes acho que é tão sinistro que não deve ser tão banal. Como disse, é apenas uma intuição. E não deixa de ser um paradoxo, sendo eu tão materialista. Inclusive, tenho ficado cada vez mais fascinado pelos paradoxos.”
E eu não costumava duvidar quando ele dizia estar ´fascinado` por algo: “Sim, fascinado, fascinado pelo mistério, pelo que o universo tem a esconder. O lado negro da lua” e devo acrescentar que quando começava a citar Pink Floyd era a deixa pra ficar prolixo, “ando fascinado com minha ignorância, é muito mais abissal do que tinha imaginado há alguns anos. É imensa. Maior que uma catedral gótica. Maior que o Maracanã. Maior até que a Austrália! Que sei eu? Se passar toda a minha vida lendo, vinte e quatro horas por dia, e viver até os cem, não terei lido um por cento do que se escreveu. E as milhares de civilizações que desapareceram? Sim, cada vez me convenço mais de que são milhares, tão diversas, tão loucas, tão bárbaras. Ando pensando muito sobre os sacrifícios humanos. Dostoyesvsky compôs um importante estudo para o suicídio, mas ainda está para ser escrita A Verdadeira História do Sacrifício. Por que eles derramavam – e derramam ainda hoje! – o sangue de um inocente? De uma virgem de quinze anos? Estão agradado aos deuses, sim? Aqui, ó! Estão agradando à eles mesmos!” e geralmente aí nos sentávamos no parquinho para estourar aquela bagana, “como te disse, estou tendo uma intuição. Escuta: é tudo matemática, certo? Então não é caótico."
Outro dia, por exemplo, aconteceu um milagre.” Pronto: era a deixa pra tornar-se profético e mirar o infinito como um Lênin ou um Gengis Khan: “Escute. Você conhece muito bem meu grau de discernimento e sobriedade. Ainda assim te garanto que presenciei uma manifestação do além. Claro que podia ser tudo um curto circuito neuroquímico, mas não sei, desconfio.... de repente compreendi que minha vida era uma parábola: me vi atravessando o arco. Foi como uma crise da meia idade precoce. Compreendi que fora lançado ao espaço e descrevia uma trajetória nesse planeta. Me vi como um astro que ascende e cai. Uma estrela que explode e depois definha. O meu coração é uma estrela” a essa altura ele estava francamente emocionado e com os olhos rasos dágua, “e ela está em plena combustão. A vida é agora. Esse momento. Essas plantinhas. Essa amizade. Vem cá, te considero” e me abraçava efusivamente, “há riqueza em algum lugar, eu sei!, quer dizer, eu não sei mas desconfio, ou quero desconfiar, é preciso desconfie de algo... sim, vi um milagre. Que fazer? Duvidar dele? Seria como duvidar de você, ou desse banco, ou daquela árvore, ou do carro que atravessa a rua, e isso não seria muito inteligente. Fui fustigado pelo sobrenatural. Desconfio também que isso é muito freqüente, mais do que se imagina. Pois bem, a coisa é a seguinte. Sei que pode parecer – e é – ridículo, mas: acho que estou apaixonado.”
Voltávamos então para o burburinho e pegávamos uma mesa no Zé ou no Vale da Lua: “Sente aí, sente aí. Olha, vou te perguntar uma coisa séria, por favor me responda com toda a sinceridade: amor é uma palavra muito genérica, eu sei, mas releve: o amor existe? Ele existe além da palavra, do conceito, ele existe dentro de nós? Pense bem. Pois eu pensei. E acho, desgraçadamente acho, que o amor existe dentro de nós, nas entranhas, nas tripas e no esqueleto. Você já amou? Pense bem antes de responder. Desculpe, vou ter que citar Pessoa: “o amor universal é inevitável e a mentira é o beijo que trocamos.” Sei que quando estamos pela quinta cerveja você já começa a achar que fico prolixo, mas não é a toa ou por exibicionismo cultural que eu cito o Dostoievsky e Fernando Pessoa. Eles fizeram parte do milagre. É uma história comprida, te conto qualquer dia, sobre uma linda mulher e uma bolsa perdida – dentro da qual haviam livros dos dois aí supracitados. Devolvi a bolsa pra ela e rolou uma história bem bonita e um sexo cinco estrelas. Tempos depois – são tantos os interlúdios e as subtramas, tantos anos, tantos e-mails extraviados – ela morreu. Ah, se eu fosse te contar a história inteira! Acredita, por exemplo, em fantasmas? Pense muito bem antes de responder. Acredita em sonhos proféticos? Já leu Jung? É o que me intriga: nossa vida é uma fagulha na eternidade, beleza, mas essa fagulha tem em média cinqüenta mil dias: em cinqüenta mil dias você cresce, ama, sofre e esquece. Você vive milhares de ciclos e troca de pele e de opinião todo dia. E se você prestar bem atenção, se começar a olhar sua vida como uma história, vai perceber um monte de fios que se soltam e que se acham, caminhos que se bifurcam, curiosíssimas conexões com as mais insuspeitadas realidades paralelas. Sem sombra de dúvida esse é o Reino Encantado e você um personagem de tarô ou de uma lenda esquecida. Mas – é hora da saideira.”
Acho que é até um dever moral eu acrescentar que não acreditava em nada do que ele dizia: “Foi aí que me tornei místico. Quero ser enterrado numa pirâmide. E é claro até para o mais parvo dos homens que existem extra-terrestres e intra-terrestres. Sempre fico lírico à essa altura do campeonato, eu sei, mas é por uma boa causa. Estou apaixonado como uma garotinha de doze anos, perdido de um amor platônico e impossível. Sim, admito que a mulher é a prova da existência de deus. É um raciocínio simples e cristalino: se deus dá a vida e mulher também, então a mulher é deus. Claro! Eu, como crente fervoroso que sou, quero cair de boca no mistério.” E então era hora da definitiva saideira e ele tentava chegar à alguma espécie de solução, “E por essas e outras digo que a vida é um mistério e um milagre e um paradoxo. A gente enche o pulmão de ar e solta, enche de novo e solta de novo. E quando a gente acorda, o sol está lá fora. Ele nasce todo os dias. Sem falta. Pode confiar. No sol a gente pode sempre confiar. Isso é uma certeza, assim como a morte é uma certeza. Vê?, o fato se sermos escandalosamente burros e limitados não impede que tenhamos uma ou duas certezas. Se eu chegar a meia dúzia não terá sido assim tão em vão.”
© 2009 André Catuaba