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Deliriuns Janas
por Luiz Filho

O sol nem estava tão forte, deve ter sido outra coisa, e Jana falava bobagens sobre publicar suas histórias numa antologia. Ela ali sentada na grama, óculos escuros, sorriso lindo e idiota. Eu a levava a sério de vez em quando, mas não naquela tarde de um sábado qualquer de agosto. Ensolarado e lindo. Sabiás comiam siriris, e maritacas voavam em bando, de uma palmeira a outra. Eu observava o lago cheio de garrafas pets e merda. Doze milhões de pessoas nessa cidade. Pra onde vai tanta bosta? Uma hora isso explode. Basta uma bituca no lugar certo. Jana abria e fechava a boca sem soltar som. Um desperdício de palavras sem peso, sem conseguir chegar aos meus ouvidos. Saiam e voavam e viravam alimento do Deus Porra Nenhuma.
Enganchei o cigarro entre o médio e o polegar, coloquei toda a força possível, e arremessei em direção ao lago de merdas e pets. Uma pomba acinzentada voou rasante e pegou a bituca no alto, como se fosse um pitbull alado. Maldita cidade envenenada. Jana não parava de falar, talvez tivesse tomado muito remédio pra emagrecer, desses cheios de anfetamina. Blá blá blá. Dizia como seus amigos gostavam de seus contos, e que era um passo enorme rumo ao estrelato literário. Que porra é essa de estrelato literário, num país de analfabetos? Palavras perdidas num pedaço de papel, que seria melhor aproveitado quando tinha sido árvore, e fornecia uma sombra amigável.
Uma mulher gorda e rosada, com joelhos cheios de dobras, e a barriga suinamente escapando pelo cós da bermuda, caminhava lentamente empurrando um carrinho de bebê. Uns pássaros pretos fuçavam o chão. Pareciam galinhas pequenas e pesadas. Os patos procuravam algum alimento entre as merdas e as pets. Um restinho de comida na bosta humana, um milho mal digerido, ou, quem sabe, um pouco de refrigerante no fundo daquele monte de garrafas. Duck-Cola! Patinhos gaseificados emitiam arrotos e quá-quás. Até tinham alguns bem gordinhos, o que me deu vontade de saber qual era o gosto de um pato assado. Jana delirava!
Uma mulher independente era como ela gostava de ser vista. Se gabava toda e abria o bocão pra dizer ‘eu moro sozinha e conquistei meu espaço’. Mas, no fundo, essas mulheres independentes são um bando de carentes. Sim, rimou! Homens em marcha, punho cerrado ao vento, gritando palavras de ordem ‘minoria, uni-vos’, ‘mulheres independentes, um bando de carentes’. As coisas estão cada vez mais fodidas para o homem heterossexual, que quer um pouco de futebol, e olhar bundas e coxas. Elas se uniram aos gays. Logo mais aparece o GLBTMI (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e mulheres independentes). Homens héteros, fuck off! Empurrados para o abismo grotesco e sujo. Eu já tinha percebido que tudo ia dar em merda na terceira, ou quarta série do ensino fundamental. Só tinha dez anos e já via a segregação entre os CDFs e o pessoal do fundão. Os garotos vagabundos, contra as meninas das notas azuis e seus caderninhos perfeitos. Título com uma cor, conteúdo com outra, contas a lápis, respostas à caneta. E os meninos com tendências femininas se uniam a elas. Ta aí a resposta! Cada vez mais elas comandam. CEOs, diretoras, donas, chefes. Tudo certo!
– O que você acha?
– Do quê?
– Porra, meu! Tô falando um tempão aqui sobre entrar numa dessas antologias. Publicar meus textos, e você nem sabe do que estou falando.
– Faça o que acha certo?
– É isso? Essa é a resposta?
– Sim! Essa é a resposta. Se liga naquele patinho. Parece que tá morrendo.
– Ah, vai… tomar… no… seu… cu!
– Tá viajando? Já te disse que quando você toma essas merdas pra emagrecer, fica toda agressiva, com o olhão esbugalhado. Só falta babar.
– É! Eu sou uma gorda agressiva. Pra você é sempre assim! Não me quer mais fala logo.
Nem me lembro ao certo qual foi o caminho que me levou até Jana. Álcool e falta de amor próprio, só pode. Quanto tempo nos conhecemos? Uns três meses? Ela foi minha mãe em outra encarnação? Ficava ali sentada, com o tronco apoiado nos joelhos, e falando, falando, falando. Cada vez mais eu gostava dos patos, e queria ser um deles. Submergir e sentir o silêncio das águas esmerdeadas. Emergir e dizer ‘ah, que gostoso ser um pato’, ou ‘Hum, olha aquela criança bem nascida, loirinha, com a mamãe sorridente. Vai, alemão, joga migalhas de pão. Vai, alemão, sua mãe é gostosa e tem um pernão. Sou um pato pintudão’. Jana tremia, e dessa vez ficou calada. Soltava fumaça pelas narinas, coisa que sempre odiei, porque lembrava o bigode amarelo do meu avô. Tremia, fumava, batia os pezinhos e olhava para a direção oposta a minha. Ela queria terminar comigo, sentia isso em cada baforada raivosa que ela soltava.
– Carlos?
Realmente, não seria nada bom o que viria depois de ‘Carlos’. Me chamava assim, quando tinha que dar notícia ruim, ou brigar por algum motivo qualquer. Senão era Carlinhos, amore mio, vem cá meu moreno, bom dia, delícia. Chamar pelo primeiro nome, sem ao menos um diminutivo, era só aguardar a paulada na cabeça.
– Manda!
– Quero terminar. Não tá rolando mais.
– Você tem razão, cada um pro seu canto.
– Assim? Não vai nem brigar? Tá fácil, né! Você só estava esperando um pretexto pra terminar comigo. È muito frouxo. Por que não fez isso antes… Homens!
– Tem razão. Homens não sabem terminar um relacionamento. Obrigado!
Levantei e sorri e me senti leve como as folhas secas que caiam sobre a cabeça de Jana. Eu sou uma folha seca, sem brilho e quebradiça, mas leve. Eu só tinha que chegar em casa e ligar pro Beto, e agradecer quando ele disse ‘essa mina é furada. Mulher chorona, modernete, independente, que anda com um bando de viados, e que acha o MÁXIMO ir naqueles vernissages onde um quadro azul é simplesmente um quadro azul, mas se você olhar de um ângulo pós-mordenista, meio retrô, com um pé no conflito árabe-israelense, vai perceber que o azul é mais profundo que o cu de uma atriz pornô’, ele dizia independente, e levantava as mãos e fazia o sinal de aspas. Beto era o cara. Vivia num apartamento perto do Largo do Arouche, e passava fumo e cocaína. Ninguém sabe de onde ele veio, e como chegou ao mundo. Quando o conheci era somente ele e o irmão retardado. Nessa época ele morava numa casinha térrea em Pirituba, já vendia drogas, e mantinha o irmão numa jaula. Dizia que o infeliz era violento com as visitas. Eu não tinha dúvida quanto a isso. Enquanto Beto ia buscar o fumo, eu ficava sentado no sofá observando o irmão se debater e esticar o braço pra tentar me pegar.
Nos dias de sol Beto colacava a jaula no quintal. Dizia que o garoto precisava de vitamina D. ‘Olha como tá a pele dele. Toda fodida. Às vezes ele prendia uma corrente no pescoço do irmão, abria a jaula, e deixava ele caminhar pelo quintal. O retardado só ouvia o Beto, mas um dia ligaram para a polícia e o irmão retardado foi parar num sanatório, e Beto na passou uns dois anos preso. Sem ter o que fazer, leu vários livros sobre arte porque adorava as figuras e os nomes estranhos. ‘Meu filho vai se chamar Rembrandt. Lindo, né?’, me disse certo dia em que eu estava fumado, e entendi aquilo como uma piada, e cai na gargalhada. Beto não gostou e colocou a arma na minha cara, mas o fumo era tão bom quanto meu medo de morrer ali, sem ter ao menos mandado o Maluf tomar no cu, e continuei rindo. Ele abaixou a arma e disse que eu era doido, e que os doidos não morrem com facilidade, e, se morrem, viram espíritos zombeteiros, e que ele tinha um certo cagaço de espíritos.
– Então vai ser assim, Carlos? Terminou e pronto?
– Você que disse que quer terminar. Entendo terminar como acabar, o fim de algo. Não?
– Ainda faz piadinhas! Não percebe como é difícil, ou você nunca me amou?
– Não tenho certeza.
– Pelo jeito não, né, seu filho da puta. Nunca se esforçou pra me conquistar de verdade, e levar uma vida descente ao meu lado. Que raiva… que raiva.
Às vezes é melhor manter o silêncio, pra não foder de vez com tudo. Me mantive em silêncio esperando a próxima pedrada verbal daquela boquinha que um dia olhei e pensei em beijar como um louco possuído por Eros, o pilantra.
© 2009 Luiz Filho