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Rogério
por Eduardo Frota

Está vendo aquele monte de comida retorcida, triturada e digerida? É meu, saiu de mim. Tem um pouco de mim ali. Meu DNA, meu laço sentimental, meu subconsciente.
Os dentes que trituraram o alimento eram os meus, cariados, sujos, com canais profundos e blocos gigantescos. Um pouco amarelados por causa do cigarro, mas ainda assim brancos. Dentes fracos, com deficiência de cálcio, raízes frouxas. Também possuem oclusão deficiente, meio torta. Teria que usar aparelho para corrigir a mordida. Aliás, todos os meus irmãos usaram aparelho, menos eu. Porém, eles não precisaram usar óculos. Uma questão hereditária: eu desenvolvi um minúsculo e insignificante grau de astigmatismo que nunca me atrapalhou a visão.
A língua que empurrou o bolo alimentar era minha também. Áspera, mais propícia a experimentar o amargo do que o doce. Uma língua de proporções medianas, nem tão grande nem tão pequena. Perfeita para mostrar aos indesejados. O mesmo não posso dizer sobre sua eficiência para o beijo. Isso porque, duas namoradas, uma na adolescência e outra já na idade madura, disseram após o término do relacionamento que o meu beijo era ruim. Eu sempre achei que não existissem maus beijoqueiros, e sim um conjunto ruim. Porém, para engolir comprimidos, dar uma limpada nos dentes e fazer caretas, ela funciona de forma satisfatória.
A garganta pela qual a comida desceu era minha. Um tanto castigada por ainda conter como cartão de visitas duas enormes amígdalas que, como o apêndice e os pêlos pubianos, não são de serventia alguma. Uma série de amigdalites, que me deixavam sem voz, me acometia de forma severa. Colecionava seringas de Bezentacil, grotescas, gigantescas, pavorosas. Eram sinônimo de dor, muita dor. Lembro-me de beliscar minha mãe para ver se a dor passava enquanto a injeção era aplicada (observação: idéia da própria progenitora), e de arrancar um bife de pele inteiro com unhas de criança de seis anos que tinha. Fiz uma cicatriz em minha mãe, que entendia a necessidade de alívio durante a medicação, uma vez que minhas amígdalas eram muito parecidas com as dela.
O estômago, que deveria ter cuidado do resto, caso o processo digestivo não fosse interrompido, era o meu. Com seu histórico extenso de dores, enjôos e náuseas. Meu estômago era como o de meu pai, muito delicado. Nós não podemos nos dar ao luxo de comer qualquer porcaria, pois uma azia é quase certa. Aprendi com ele a carregar bicarbonato de sódio na mala, pasta ou mochila. Não janto na casa de amigos e recuso com delicadeza ofertas de ordem alimentar. Mas dessa vez foi diferente.
Eu senti um certo carinho pelo que estava engolindo. Não fui eu que cozinhei o ovo mexido, foi a Eulália, a cozinheira aqui de casa. Mas é como se o ovo fosse meu. Porque não foi a Eulália que pôs o ovo. Logo, não há regra para reclamar o domínio sobre essas coisas. Ainda mais no caso de um ovo, cuja origem fica comprometida com aquele paradoxo ridículo de revista de ciência sobre o que veio primeiro, o ovo ou a galinha.
Pois bem, eu engoli o ovo, que logo virou uma pasta dentro da boca. Sentia ele preenchendo o vazio do meu corpo a cada etapa do processo digestivo. Minhas enzimas estavam atuando sobre ele. Minhas e de mais ninguém. Tratava-se de um ritual muito íntimo, velado, quase secreto. Como se cada célula minha exercesse sua função dentro de uma cadeia complexa, cheia de regras e normas. Se outra pessoa, que não eu, mastigasse o mesmo ovo mexido, certamente ele iria adquirir consistência, tamanho, cor e textura diferentes. Esse ovo era meu.
Assim fiz minutos depois: pus tudo para fora, de propósito. Admirando o resultado do meu esforço, resolvi batizá-lo de Rogério. Sempre sonhei com esse nome, o de um menino forte e brincalhão. Nos meus sonhos eu bradava “Rogério!” com eloqüência, enchendo a boca de orgulho e deixando um sorriso percorrer todo o rosto sem deformar a fisionomia.
Aquele ali é o Rogério. Ele acabou de completar duas horas de existência. Requer cuidados como qualquer recém-chegado ao mundo. Prometo ser atencioso e não deixar nada lhe faltar. Dever de pai. Sim, eu sou pai de Rogério. Para ser pai tem que pôr alguma coisa para fora, para o mundo, um pouco de si mesmo para perpetuar sua razão e seus sonhos. Eu não renego meu próprio bolo alimentar, fruto de um vômito forçado. Foi doloroso enfiar o dedo goela abaixo e deixar vir à tona contrações involuntárias, acompanhadas de um mal estar ferrenho. Eu sorrio. Eu o amo. Ser pai é isso mesmo. A partir de hoje eu estou quase completo. Só me falta escrever um livro e plantar uma árvore.

© Eduardo Frota