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Uma Análise do Filme Tempo de Guerra (1963)
por Rafael Issa
"O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens". (Guy Debord, "A Sociedade do Espetáculo").
Será o cinema-espetáculo uma metáfora para a atual existência imagética do Ocidente pós-moderno? Abre aspas. "Pensar verdades e mentiras a respeito da vida e do cinema é estar sujeito à uma reflexão entre aspas". Fecha aspas. Arte é arte e vida é vida? A arte imita a vida? Se sim, qual vida: a real ou a irreal? Será o cinema-espetáculo a ficção da ficção (como provavelmente diria Platão)? Pode o cinema, por essência manipulação do "(ir)real", através de um conjunto de imagens, questionar o existir imagético, típico da nossa sociedade do espetáculo denunciada pelo situacionista Guy Debord? Para o cineasta francês Jean-Luc Godard sim, o que faz da sua obra uma saborosa contradição em si mesma. O que pode ser observado - por exemplo - no teatro de Bertolt Brecht e Luigi Pirandello, e de certa forma nos movimentos de vanguarda de uma maneira geral, é esta arte que busca transcender sua condição de arte. É o que Pirandello faz em peças como Seis Personagens À Procura de Autor e Assim É (Se Lhes Parece). O que há de comum entre Brecht, Pirandello e Godard, além de uma perceptível aversão à figura do burguês capitalista, é o intuito de produzir não emoção, mas sim reflexão (justamente pela sátira da sociedade do espetáculo). No caso específico da sétima arte, esta discussão toma contornos ainda mais irônicos do que ao pensarmos uma relação arte-literária e vida "real" - pelo fato já mencionado de que o cinema se faz de um conjunto de imagens, coloridas ou em preto e branco e que, quando manipuladas (consciente ou inconscientemente) para tal, podem ter um caráter hipnotizante. Imagens que quando editadas em uma determinada seqüência, buscam transmitir ao público espectador a sensação - que dura aproximadamente uma hora e mais alguns minutos - de contato com uma "história real". A vida social (real-irreal), para Debord, segue uma lógica parecida em seu fluxo de manipulação: produz imagens, espectadores, atores, sonhos de consumo, padrões, democracias ilusórias, e anestesiamento intelectual. Vale dizer que esse "caráter hipnotizante" é característica tanto de um cinema calcado unicamente na intenção do entretenimento, quanto de um cinema que se pretende reflexivo mas por alguma razão (ou falta de) fracassa no seu objetivo original. É o caso, por exemplo, dos filmes de guerra. Godard compreende que a guerra, no cinema, é geralmente retratada através de uma linguagem-espetáculo e - assim sendo - de forma superficial. Filmes contemporâneos como O Regaste do Soldado Ryan, do sempre "espetaculoso" diretor Steven Spielberg, nos servem como exemplo deste cinema-espetáculo do qual Godard não é simpático. Suas imagens "perfeitas", sua dramaticidade, e sobretudo sua emotividade, fazem com que o espectador, emocionalmente envolvido com o filme, não perceba os mecanismos existentes "por trás" dos conflitos de interesse. Em outras palavras: chorar com o tema da guerra não é necessariamente pensar ao seu respeito de forma consistente.
“O realismo não é fazer como as coisas verdadeiras, mas como são verdadeiramente as coisas”. (Bertolt Brecht)
"E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada e a verdade é profana". (Feuerbach)
É com o intuito de subverter esta representação anestesiante que Godard filma, em 1963, o longa Tempo de Guerra (Les Carabiniers). Sinopse: Durante a guerra, soldados de um país fictício recrutam fazendeiros para lutar pelo Rei, na promessa de fortuna e diversão garantidas. Dois homens são convencidos por suas mulheres à irem, e lutam por meses nas barbáries da guerra sem fim, retornando para casa cansados, desmoralizados e apenas com uma pequena mala, onde dizem estar todas as belezas do mundo. A tentativa, característica marcante da Novelle Vague, é a de uma impressão - em conteúdo - da realidade além das aparências do espetáculo burguês. Neste sentido, Godard busca desdramatizar o tema da guerra, ao invés de dela fazer espetáculo imagético. Em Tempo de Guerra, nenhuma ação militar é estetizada de maneira que inspire honra, bravura e heroísmo. A violência estúpida dos personagens retratados no longa é colocada de maneira crua, em contraste com momentos prosaicos do dia a dia no front - geralmente esquecidos pelo cinema-espetáculo do gênero. A guerra é condenada, deslegitimada em si mesma, sem mocinhos e bandidos. É como se a câmera se mantivesse "fria", impassível, "encarando" com naturalidade o que não é natural, como no teatro brechtiano. A câmera é a metáfora do espectador, consciente ou inconsciente, reflexivo ou não. Tal linguagem é, no cinema de Godard, um caminho para que o cinema possa se aproximar ao máximo da realidade oculta por trás do espetáculo imagético-social, e de sua representação no cinema-espetáculo. Decodificar o irreal da vida e - por meio do cinema - oferecer um pouco de realidade.
Um aspecto fundamental em Tempo de Guerra é a relação que Godard estabelece entre guerra e propaganda. Este é um dos motivos pelo qual o diretor francês se preocupa em não fetichizar suas imagens de guerra - para que elas não produzam efeitos similares aos que o longa pretende satirizar. Fetichizar, dramatizar, é - para Godard - esconder, trazer o espectador para uma contemplação emotiva e ingênua. O intuito em Tempo de Guerra é criticar sem fetiches uma sociedade que fetichiza, que faz do ser humano mercadoria e da mercadoria ser humano, que produz imagens ilusórias de sucesso, glória, progresso. Não é a toa que Ulysse e Michel-Ange - protagonistas do filme - são figuras ingênuas. Ao serem convocados pelo exército do Rei, vislumbram a possibilidade de ter e fazer o que quiserem. Matar, roubar carros, tesouros, etc. Essas são as promessas feitas pelos súditos do estado monárquico ao convencê-los de que participar da guerra será um bom negócio: liberdade plena, riqueza e dias de diversão. Ingenuamente nossos protagonistas concluem que o Rei - ao lhes oferecer "oportunidades maravilhosas" - tem para com eles uma relação de zelo pessoal. Entretanto, Godard procura ressaltar que trata-se justamente do contrário: Ulysse e Michel não passam de massa de manobra de um déspota que não se importa com eles de fato; e que, ao contrário do que lhes fora dito, a guerra trará dor e, muito provavelmente, o sacrifício de suas próprias vidas. Há no filme uma cena extremamente importante na simbologia de Godard: ao retornarem do front, Ulysse e Michel chegam em casa com uma pequena maleta em mãos. "Aqui...", afirmam às suas esposas, "... estão todos os tesouros do mundo". E retiram da mala um punhado de cartões postais onde estão representados diversos monumentos do mundo. Ambos acreditam ter em mãos títulos de propriedade; propriedades das quais poderão tomar posse ao fim da guerra. Aqui Godard explicita seu descontentamento com este sistema produtor de guerras imperialistas. E mostra que a propaganda não é apenas o sustentáculo de manutenção dos conflitos de interesse, mas também o seu foco causador. É possível uma relação com o comportamento das grandes corporações atualmente inseridas no Ocidente globalizado. Seus mecanismos marqueteiros, o seu foco no imagético, os fetiches propagados, sua sede de destruição da concorrência; verdadeiras guerras por lucro e poder. Uma nação essencialmente gananciosa, calcada na disputa voraz entre seus indivíduos é uma nação "pronta" para os conflitos de interesse externos". Esta é a lógica da guerra. Os padrões de consumo e comportamento são retratados profeticamente (pois eles se acentuam no pós-guerra fria) na cena em que a esposa de um dos soldados-protagonistas pega uma revista Marie Claire, especificamente em uma página onde há a fotografia de seios vestidos por um sutiã "da moda", e a coloca diante dos seus próprios seios; como se os seios daquela revista fossem seus.
Uma outra cena que somente ao espectador mais atento soará como uma provocação ao espectador desatento: Michel vai ao cinema (e temos aqui uma espécie de representação do público consumidor de cinema; uma espécie de "cinema dentro do cinema") onde se depara - na tela - com a imagem de uma mulher nua, que toma um banho de banheira. Embora a cena em si deixe bem clara a noção de que aquela mulher de fato está nua, a banheira cobre todo o seu corpo, de maneira que somente o seu rosto é capturado por este "filme dentro do filme". Mas quem garante que aquela mulher está de fato nua? Quem garante que, por trás da banheira, no "set de filmagem", ela não se encontra vestida? No entanto a noção é a da nudez. Inconformado, Michel se levanta de sua poltrona e, diante da tela, estica seu rosto para frente, como se com isto fosse possível enxergar o corpo da mulher coberto pela banheira. É quando Michel tropeça na tela e acaba por derrubá-la, revelando-se ao espectador (tanto para Michel, "inserido no filme", como para o espectador de Tempo de Guerra) "uma "parede fria" onde o que permanece é unicamente a "sombra da mulher na banheira". Está revelada a "farsa", eis a caverna de Platão. Aquela mulher não passa de uma imagem, de uma projeção; "algo" que produz um desejo de posse, mas que não pode ser tocado. São essas as imagens que Godard procura transmitir em Tempos de Guerra: de que as imagens são apenas imagens.

© Rafael Issa 2008