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Sobrevivência
por Priscila Biancovilli
Quando resolvo abandonar o esconderijo em direção à luz tão funesta e bela, demasiado humana, já contemplo meu destino. Sigo-o pelas trilhas habituais há tantos milhões de anos traçada, sem medo. Não tenho sentimentos, e tampouco entendo a necessidade destas nulidades biológicas tão complexas, devem ser intervenções de algum anjo torto, rabiscadas quando Deus se distraía com assuntos importantes. Sem floreios, apenas me faço professar um destino barato.
Saio da fenda escura preparada. Minhas antenas longas olfatam qualquer resquício de alimento que um dia já foi deixado para trás. Meus palpos, ao contrário do que muitos pensam, têm um paladar bastante rigoroso. Engulo apenas o que não passou da data de validade. As asas e os cercis me salvam do predador. Quando ele se aproxima, percebo a brisa mínima de seus movimentos, e então aciono as patas com agilidade, ou vôo em direção a seu nariz. Não há neste mundo humano bravo o suficiente que resista a uma voada no nariz.
O lugar parece vazio. Aqui, posso explorar de tudo à vontade. É fácil ser urbana e alcançar o oásis da sobrevivência a menos de dez patadas. Por isso estamos ficando gordas e sedentárias. Mesmo que eles jamais assumam, nós e os humanos somos parte de uma mesma teia; amigos numa coexistência eternamente bem sucedida. Tenho companheiras ao meu lado que hoje exploram pela primeira vez os detritos de felicidade. São jovens botõezinhos ainda sem asas, mas ágeis o suficiente para encontrar um esconderijo seguro até que a ameaça se dê por vencida. Então, elas retornam à vida predatória urbana: um achado. Eu, do alto de meus 150 dias, sustentados por estas patas errantes, tenho maturidade para entregar-me com resiliência ao dia da morte.
Sinto um movimento dos cercis. Um humano de baixa estatura caminha para mais e mais perto. Ouço um grito seco, estridente. Em poucos segundos, humanos maiores se aproximam, mas são lentos demais para a nossa agilidade. Todas já estamos protegidas em lugares absolutamente inalcançáveis, dada a flexibilidade invejável de nossa carcaça. Alguns minutos, algumas buscas, e em pouco tempo retorna a calmaria. Saímos.
Um pressentimento ruim se esfumaça sobre minha cabeça. Nada posso fazer, além de respeitar o determinismo escrito nos meus genes. Volto à caça sem medo, apenas preparada para fugir dos riscos. Quero orgulhar o grupo que lidero. Quero servir de exemplo a todas que já temeram quaisquer ameaças. Não temam. Colecionamos vitórias há quase 500 milhões de anos. Somos invencíveis.
Sinto novamente uma presença humana. Desta vez, porém, ela não surge acompanhada de gritos. Ela é sorrateira, traiçoeira, mórbida. Percebo sua presença e tento escapar, mas, antes que encontre uma fenda próxima o suficiente, recebo um jato líquido e me despojo de toda a agilidade. Olho ao redor e percebo que os botõezinhos, no ápice da juventude, conseguiram escapar com sucesso. Quando o homem torna a silenciar, revolvo-me num esforço de sobrevivência e movo minhas patas em direção a um azulejo entortado. Recebo outro jato de líquido assassino e perco o controle sobre as patas, as antenas e os cercis. Apelo com desespero para as asas, mas elas não colaboram comigo. Todo meu corpo transformou-se numa matéria espasmódica. Sinto dor.
O homem olha com alívio para as patas levantadas e o ambiente silencia. Penso nos meus 150 dias de vida bem vividos, e nas companheiras que agora seguem seus instintos. Não haverá despedidas. Segui com bravura o destino reforçado por cada parte de mim. O que os humanos não sabem, tolos como são, é que guardo descendentes imunes a estes brinquedinhos mortais. Tenho dentro de mim quarenta crianças, que em poucos dias se tornarão a minha imagem e semelhança. A vitória, amigos, não vem assim tão fácil. O fim é apenas o começo.

© Priscila Biancovilli 2008