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Canção de Ninar
por Liliane Reis

Abriu a porta com cuidado, interrompendo o movimento a cada rangido. Não ousaria - sequer poderia - interromper o silêncio noturno que dominava o aposento. Tão logo conseguiu abertura suficiente para lhe garantir passagem, se esgueirou pela fresta, imediatamente fechando a estreita entrada de luz.
No quarto às escuras, seus olhos custaram a se acostumar. Piscou diversas vezes antes que qualquer imagem ganhasse contornos nítidos - ao contrário do que suas leituras pregavam, o luar não era uma fonte de iluminação eficaz. Tudo que distinguia era uma vaga impressão do parapeito da janela e o movimento das cortinas, fantasmagóricas mãos esbranquiçadas que se estendiam na direção da cama. Seguiu até o móvel em passos quase felinos, mas optou por contorná-lo. O vento frio crispava sua pele e o uivo que produzia era ainda mais incômodo. Fechou o batente com delicadeza, um suspiro embaçando o vidro.
Voltou ao centro, mãos estendidas na frente do corpo para evitar colisões. Alcançando o leito, ajoelhou-se, apoiando suavemente as mãos no colchão macio. Pouco a pouco, percebia os contornos delineados pela luz pálida. Não que realmente precisasse enxergar; já conhecia mais que suficiente a mulher que jazia em posição fetal, respiração tão lenta que mal se fazia notar. Aproximou-se do rosto já tomado por algumas rugas e, forçando a vista, pôde identificar uma trilha ligeiramente lustrosa partindo dos olhos. Com o indicador e o médio, averigou a fronha umedecida, somente para confirmar suas suspeitas - o que não faria diferença alguma. Aquelas lágrimas não lhe significavam nada. Na verdade, só serviam para aumentar o abismo que havia entre seus pés e a beira da cama, pois mesmo na atitude amarga e definitiva que estava preste a tomar havia maior indício de amor do que jamais havia recebido. Estava ali para devolver algo que nunca foi seu. Não que ela merecesse mas, enfim, nada mais poderia ser feito. Sem caminhos de volta, sem soluções. E, se deveria ser assim, que ela passasse a dormir com essa única lembrança.
Mal percebeu quando começou a entoar uma melodia, e levou alguns instantes até ver que se tratava de uma canção de ninar. Não lembrava mais dos versos, tanto tempo se passara desde a última vez! Agora embalava seu sono, numa curiosa inversão de papéis, mas não o fazia por desvelo. Sua voz era carregada de desprezo, notas escapando por entre seus lábios como farpas. E a música fluía, mesmo que apenas murmurada, enchendo o ar. Cada som libertava uma pequena porção de toda a dor que trazia represada no peito, compondo a confissão que jamais ousaria fazer. Fragmentos de sua infância ressurgiam, corrompidos, criando uma torpe despedida. Era a maneira que encontrara, ainda que inconscientemente, de dizer adeus.
Deitou a cabeça no canto do travesseiro, sem fazer cessar a canção. Chegou a acariciar uma mecha alourada, admirando aquele estado de fragilidade e vulnerabilidade. Afinal, a mulher, embora franzina, sempre demonstrara um rigor inquestionável. Mas agora, adormecida, nem de longe fazia lembrar o poço de austeridade, de interior inescrutável. Perguntava-se o quão verdadeira era aquela imagem, em que ponto entre a insignificância e o poder, entre céus e terra ela se escondia. Uma vida inteira, e jamais fora capaz de entendê-la. Ela também nunca conseguiu compreender seus gostos, seus anseios, seus pedidos - ou talvez não quizesse fazê-lo. Talvez ela não se importasse; talvez ela fosse mais feliz sozinha. Pois ela tinha planos, e nenhum deles incluia uma criança, uma erva daninha que destruiria tudo que ela plantara.
Respirou fundo, e por um momento se permitiu sentir a frustração que fora sua companheira fiel ao longo dos anos. Crescera com a certeza de que tudo seria melhor se jamais tivesse nascido - ou mesmo tivesse morrido logo -, o que era um fardo pesado demais para seus ombros. Não fosse isso, quem sabe, tivesse sido feliz. Mas agora já tomara sua decisão, e coisa nenhuma ficaria em seu caminho. Daria aquele passo definitivo de cabeça erguida, pela primeira vez; expiava suas culpas e nunca, nunca pediria perdão. Ela não merecia.
Prosseguia com a melodia mecanicamente, enquanto tentava entender por que ela chorava - não conseguia ver uma razão para aquilo, não sentia o bastante. Já passaram por situações idênticas tantas vezes que sequer poderia contar, e ela não costumava sentir tanto. Acabou contendo um riso desdenhoso quando lhe ocorreu que poderia ser qualquer tipo de pressentimento materno. Bela hora para resolver assumir o papel abandonado.
Foi quando lhe veio a pontada no peito, anunciando que algum arrependimento tentava se manifestar. Veio o medo de deixar tudo para trás, romper com o mundo que conhecia, seus dogmas e leis tão cravados em sua alma. Com um nó se formando na garganta, percebeu que queria colo, e isso lhe doeu mais do que todo o resto. Não encontraria nada do que precisava naquele quarto. Com isso em mente, ergueu a cabeça, fixando o olhar (agora turvo) no rosto adormecido. Calor lhe dominava a face, num amargo misto de mágoa e raiva que culminou no toque salgado de uma lágrima no canto de sua boca. Forçou-se a admitir que ela conseguira mais uma pequena vitória, mesmo sem fazer nada.
Aproximou o rosto do dela, franzindo as sobrancelhas em uma expressão que beirava a dor; encerrando a cantiga, testas recostadas, inspirou pesadamente. Ainda antes de levantar, beijou os olhos cerrados, enquanto os dedos, lentos, deslizavam pelos cabelos, colocando-os para trás da orelha. Soprou-lhe no ouvido a derradeira palavra, eternizando aquele instante e se ergueu, enfim. Acabou com o que viera fazer, e pôde então cruzar o cômodo nos mesmos passos suaves de sua chegada. Alcançando a porta, não se deu ao trabalho de olhar para trás; apenas a abriu com cuidado, evitando os rangidos. Tão logo conseguiu espaço suficiente para passar, atravessou o portal, sumindo entre a luz que vinha de fora. No quarto, só a escuridão.

© Liliane Reis 2008