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Reflexo
por Patricia Azeredo

Vislumbrou-se no espelho com seus olhos míopes e, como de praxe, desgostou do que via. Não se tratava de paranóias relativas a imaginadas gordurinhas a mais ou mero descontentamento com a cara amassada habitual da manhã. A questão surgia mais complexa. Não gostava de si mesma. O vidro polido descortinava despudoradamente sua alma. Ali era possível enxergar nitidamente o lado de si que não revelava a ninguém. Não ousaria.
Lembrou dos tempos de escola, quando sofreu com apelidos em relação a seu rosto marcado pelas espinhas da pré-adolescência. Aquilo teria um efeito devastador em sua auto-estima, só percebido anos depois. Passou a adolescência metida em roupas largas, com a desculpa de serem confortáveis. Pura forma de esconder seu corpo, do qual tinha vergonha. Gordinha e de óculos, escorava-se numa superioridade intelectual alimentada por uma professora. E disso fez seu porto seguro.
Não era anti-social. Amigos, ela os tinha. Ou melhor, amigas. Justamente quando os hormônios iniciavam a sinalizar sua existência, o sexo oposto se tornara um mistério insondável. Passou todo o período das festas de 15 anos e boates completamente invisível aos olhos masculinos, vendo suas amigas caminharem com altivez nesse terreno. Enquanto ela criara uma barreira intransponível ao seu redor com um sucesso absoluto. Inconscientemente achava difícil ser mulher.
E assim foi vivendo, esquivando-se da imagem oculta aos outros e tão dolorosamente visível para ela. Cada olhada no espelho representava imageticamente a dor e a incerteza. Do que era, do que gostaria de ser. Do que receava se tornar.
Acabou por esconder, fingir, esquecer. Teve alguns homens entre “rolos”, “cachos” e “ficantes”. Mas jamais se entregou de todo. Duvidava até ser capaz de fazê-lo. Justamente por se achar horrível por dentro. Deformada. Intrinsecamente má. Se mostrasse essa sua faceta, as conseqüências poderiam ser funestas. Temia esse aspecto de si, evitava pensar nele, por se crer capaz de atos sublimes ou horrendos. Ah, a quem desejava enganar? O sublime seria raro, pois se considerava egoísta. O horrendo representava a possibilidade assustadora.
A despeito disso, a existência continuava célere: trabalho, estudos, amigos, família. Colecionava momentos de felicidade, de fato, à custa de viver uma amarga ilusão, escudando-se na chamada “calma dos ignorantes”. Ou pior, dos que fingiam ignorar.
Gradualmente foi apreciando seu reflexo. Acabou perdendo peso. Fisicamente, estava bem. Conheceu novos amigos e engajou-se no árduo aprendizado de se mostrar. Fazia progressos notáveis. Mas ainda a alma a atormentava. Via-se diferente de todos, com algo "faltando", embora lhe fosse impossível precisar o quê. Ou hesitava em admitir. Hábil com as palavras, possuía uma atávica inaptidão para achar um adjetivo ou substantivo sequer capaz de descrever com precisão o que se passava em seu íntimo. Perdia-se em circunlóquios.
Contudo, a conclusão a atingia inclemente: nem todas as barreiras caíram. Ainda faltava uma. A mais complicada. Tão difícil a ponto de já se haver conformado em brava covardia em mantê-la impenetrável, a salvo de outros. A salvo de si.

Eis o fato: tinha mais medo de si mesma do que do outro. Há muito deixou de ser uma questão de feiúra de corpo, consistia na feiúra da alma.
Diante do vidro embaçado pelo vapor do banho reconfortante, ela se olha no espelho de corpo inteiro mais uma vez. Sem roupa. Jamais se sentira tão nua.
Ele surge por trás, sorrateiro, e lhe dá um longo e lento beijo no pescoço. Ela inclina a cabeça, abrindo passagem em deleite duplo pois, sem fechar os olhos, apreciava a cena no espelho. Depois de quase perder o fôlego por seus diligentes esforços, ele diz:
- Você é linda.
Ela apenas sorri, um sorriso largo exprimindo uma felicidade insofismável. As palavras, suas companheiras e instrumentos de trabalho, ali se faziam desnecessárias. Por um breve momento vislumbrou asas brancas saindo de seus ombros no espelho.
Ela começava a acreditar.
© Patricia Azeredo 2007