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Esdruxulidades
por Priscila Biancovilli

João vivia no 104. Ela, bem em frente, no 105. João era um menino extrovertido e curioso, adorava pesquisar sobre a vida dos vizinhos. Seu maior hobbie era pegar emprestado o binóculo do pai – daqueles bem potentes, que conseguem até enxergar as crateras da Lua – e passar o dia inteiro analisando o cotidiano da vizinhança, principalmente a vizinhança feminina. “Um dia ainda viro um Sherlock Holmes! Ou um espião da CIA, talvez. Experiência não me falta...” – sonhava o menino. Ela, porém, permanecia uma incógnita. Morava ali há pelo menos cinco anos, sozinha. Nunca recebia visitas, raramente saía de casa e, quando o fazia, usava um lençol preto que cobria todo o corpo, algo como uma burca. João também não tinha como invadir a privacidade da mulher: as janelas de sua casa, cobertas por grossas cortinas opacas, jamais se abriram, em todo esse tempo. Seria ela uma idosa deformada? Ou uma bruxa? Ou quem sabe uma garota linda, mas tão linda que hipnotizasse todos os homens a seu caminho, e, pelos ossos da perfeição, fora obrigada a viver encoberta? Questões sem resposta. Isso, para João, doía tanto quanto uma orquestra incompleta, para um maestro. Sim, ela destoava da homogeneidade, com sua aura impenetrável. Mas isso não importava. Aquela atmosfera enigmática o havia conquistado, tanto que resolvera focar todo seu aparato investigativo apenas nela, até conseguir estabelecer um mínimo contato. Apaixonou-se.
Ela, no entanto, parecia viver alheia à realidade. Nunca participava das festas, nunca convidava ninguém para tomar um cafezinho em sua casa e, ao que tudo parecia indicar, jamais necessitou de ajuda próxima para consertar um encanamento, pedir uma xícara de açúcar ou matar uma barata. Sua aparência sombria causava certa desconfiança nos vizinhos, que já pensaram até em denunciá-la à polícia, certos de que ela seria alguma foragida de alta periculosidade. Vizinhos são mesmo criaturas engraçadas: adoram estereotipar seus convivas, criando julgamentos falaciosos que caem na boca do povo com a rapidez de uma partícula teletransportada na velocidade da luz. Mas João era diferente. Ele adorava desafios, e não queria de forma alguma se prender ao comodismo dos julgamentos pré-estabelecidos. Estava disposto, como nunca, a levar sua investigação até as últimas conseqüências, forte, glorioso, persistente, mesmo que isso lhe valesse a reprovação na escola, o distanciamento dos amigos, o desperdício das férias, ou mesmo a vida! é... João também adorava fazer um drama.
E pôs início à pesquisa. De prontidão na janela do quarto, binóculo sempre a postos, mas devidamente escondido para não levantar nenhuma suspeita. Seriedade digna dos mais célebres detetives particulares, mentiras na ponta da língua para justificar aos pais as faltas torrenciais à escola, o menino estava disposto a seguir seu projeto até o fim. Um, dois, três dias... sete, oito nove, e nada. A casa parecia uma entidade mal-assombrada, ninguém entrava ou saía. Dez, onze, doze, treze... haja disposição. O menino estava quase desistindo. Quem sabe ela não havia sido abduzida por alguma nave extraterrestre e sumido de vez? Ficar de prontidão esperando o nada é deveras desanimador. E tratou de dar uma abrandada na investigação. Foi quando – parecendo adivinhar seu pensamento – ela resolveu sair de casa, majestosa e esquisita como sempre. E João entrou em êxtase. Finalmente teria trabalho! Saiu de casa rápido como um lince e pulou em sua bicicleta, disposto a segui-la camufladamente.
Não imaginava a dimensão da aventura. A moça percorria a pé, com sua burca, caminhos despovoados, estradas de terra batida e subidas vertiginosas pelas quais ele nunca havia passado antes, numa velocidade exageradamente alta, e constante – parecia não se cansar, embora João já estivesse exausto. Suas pernas, trêmulas, quase o fizeram desistir da missão, mas a força suprema da curiosidade falava mais alto. E finalmente chegaram. O menino recostou sua bicicleta a mais ou menos 100 metros de distância, atrás de um carro. O lugar, deserto, feio e distante de quaisquer resquícios da cidade, provocava calafrios. Ela acabara de entrar num barraco de madeira malcuidado, e lá de dentro era possível enxergar outras criaturas vestidas de preto, estranhíssimas. A reunião durou a tarde inteira – cerca de 5 horas – e, nesse tempo, João havia tomado uma decisão crucial: abordaria a moça quando estivesse entrando em casa, e tentaria estabelecer um diálogo amigável.
Seguindo-a de volta pelas pistas sinuosas vinha o menino, ansioso, mas seguro do que queria fazer. Imagina a credibilidade que ele não ganharia com os vizinhos? Sem esquecer as paixões que o motivaram a começar tudo – tanto a paixão pelo trabalho quanto uma outra, platônica, que ele desenvolvera inconscientemente pela vizinha misteriosa. Em um ato digno de aplausos, com as pernas cambaleando de tanta dor, João consegue finalmente voltar a seu habitat. Firme e decidido em cada passo, caminha em direção à casa estranha, com pressa, antes que a mulher volte a se trancar lá dentro. Quando se aproxima dela, entretanto, ele perde toda a compostura e começa a tremer, mas mantém a coragem:
- Ei, moça! Boa tarde, sou seu vizinho aqui do 104. Por que você nunca sai de casa? - perguntou.
- Não me enche o saco, fedelho, tenho mais o que fazer - respondeu a mulher, numa voz um pouco grossa demais pros padrões femininos, o que a esta altura levantou sérias suspeitas sobre seu sexo.
- Mas, por favor, deixa pelo menos eu ver seu rosto! Se você continuar com essa grosseria, eu nunca vou parar de te encher o saco!
E a criatura virou-se, desdenhosa, batendo a porta da casa na cara do rapaz. João, que não é bobo nem nada, agiu rápido e abriu a porta de supetão, antes que qualquer um tivesse tempo de trancá-la. E entrou.
- Pronto, já estamos sozinhos, moça. Agora dá pra você me explicar esse teu mistério?
- Ai, ai, ai - pensou - tá bom. Depende da pergunta. O que você tanto quer saber, afinal?
- Primeiro: por que você nunca sai de casa? Segundo: por que essa você não sai de dentro deste lençol preto, se não estamos nas Arábias? Terceiro: eu tava te seguindo de bicicleta agora a pouco e queria saber que tipo reunião louca era aquela!
- Mas você é fofoqueiro dos bons mesmo hein? Bem que o Alf me falou, essa laia existe em qualquer lugar do universo. Conto tudo pra você, sob uma única e pequena condição: não dizer nada, absolutamente NADA a ninguém, concorda? As conseqüências podem ser inimagináveis...
João fez que sim com a cabeça, medroso. Será que valeria a pena, para ele, abrigar a revelação deste mistério?
- Ah, eu fiz por merecer – pensou. E lá permaneceu.

Ela foi então, devagarinho, tirando o lençol preto que recobria ser corpo. Qual não foi o susto do rapaz ao perceber que aquilo não era uma mulher? E também não era um homem? Sete braços, três pernas, três olhos, uma boquinha que parecia um funil virado pra dentro... João estava atônito, pois acabara de perceber que era um dos poucos humanos a manter contatos imediatos com um E.T!
- Você é um E.T? Que máximo! Qual o seu nome?
- Prazer, terráqueo. Meu nome é Alfa. E o seu?
- João. Mas o que você veio fazer aqui na Terra? Tentar dominar o mundo?
- Que nada, amiguinho! Nós somos do bem. Aliás, esta Terra é que é o mal. Vim aqui pra tentar levar uma vida melhor e até agora não consegui nada que preste...
- Ué, mas o que você veio fazer aqui?
- Sou uma universitária lá no meu planeta, Orion. E estou desempregada. Vim aqui pra tentar juntar uma graninha e bancar meus gastos. Era pra eu ficar aqui mais ou menos 8 anos. Só que, pelo jeito, eu parei no lugar errado. Nunca vi gente tão conservadora em toda a minha vida. Nenhum terráqueo pode me ver sem aquele roupão preto que já vai querer me capturar, levar pro zoológico, mostrar na televisão... e eu sou muito tímida, não sirvo pra essas coisas.
- Ah, entendi! E aquela reunião maluca?
- Aquilo não é uma reunião qualquer. é a confraria dos extraterrestres emigrados. Lá a gente se reúne pra trocar idéias, experiências e dicas de como lidar com os nativos. Entendeu agora? O patrono da nossa sociedade é o E.T. de Varginha, aquele do cabeção verde que apareceu na mídia, ficou famoso, deu entrevista no Fantástico e tudo. Ele é nossa referência. Foi pioneiro na exploração de novos territórios intergalácticos.
- Sim, claro. – disse João, ainda surpreso.
- Achei que a Terra fosse um pote de ouro, mas descobri que, na verdade, é um vale de desolação. Logo, logo, assim que juntar um dinheirinho pra pagar a nave, volto pro meu planetinha natal. Quantas saudades. Lá eu sou livre!
Aquela notícia soou como um balde de água fria para João:
- Se você for, vou morrer de saudades. Fique, por favor! – implorou.
- Ora, ora, não seja quadrado, estático. Vou lhe fazer um convite: por que não volta comigo para Orion? Lá você vai poder cursar sua faculdade em paz, num ambiente liberal e harmonioso, sem guerras ou ditadores anencéfalos. Pode ficar na minha casa, se quiser. Gostei muito de você.
Surgiu um clima de amor no ar. Os E.T.s de Orion guardam algumas características peculiares: quando ficam excitados sexualmente, o rosto adquire um tom azulado e a boca, afunilada para dentro, sai pro lado de fora, de modo a exercer um encaixe melhor. Percebendo o problema, João pediu licença e foi rapidamente até a sua casa, pegar o funil da mamãe emprestado. Munido deste aparato, Alfa e João beijaram-se longamente, como que sedimentando a convivência harmoniosa dos terráqueos com seus novos vizinhos em potencial, os seres extraterrestres.
João, depois de terminar o segundo grau, resolveu mudar-se para Orion. Seus pais choraram a partida, mas estavam complacentes. Era o bem-estar do filho que importava, acima de tudo. Alfa também fez sua parte, conquistara a simpatia deles com seus papos inteligentes e senso de humor único. Lá, namoraram, casaram e tiveram dois pequenos filhos híbridos, mas graciosos: Elfa e Ilfa. Para ele, Orion tornara-se o lugar de seus sonhos, um recanto de perfeição no universo, que deveria servir de referência aos demais planetas. Desgarrando-se dos bens materiais terrestres e decidido a construir uma nova vida, João só levou embora da Terra um puro e simples objeto de utilidade premente: a coleção de funis de sua mãe.
E viveram felizes para sempre.

© Priscila Biancovilli 2007